quarta-feira, 8 de julho de 2009

PARA REFLETIR:


Ler devia ser proibido
(Guiomar de Grammont)

A pensar a fundo na questão eu diria que ler deveria ser proibido. Afinal de contas ler faz muito mal as pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz a loucura, desloca o homem do humilde lugar que fora destinado do corpo social. Não me deixam mentir os exemplos de Dom Quixote e Madame Bovary. O primeiro coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram meteu-se mundo afora, a crescer capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary tornou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesões.
Ler realmente não faz bem. A criança que ler pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo induzindo a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem a leitura ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram. Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-lo com cabriolas da imaginação.
Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. Mas para que conhece se, na maior parte dos casos, que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim é fazer o que dele esperam e nada mais?
Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para os caminhos que devem necessariamente ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.
Além disso, os livros estimulam os sonhos, a imaginação e a fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos,nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal.Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento.Que há algo a descobrir.Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais percebidas.
É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas.
Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para seus filhos, podem levá-los a desenvolver esse. Gosto pela aventura e descoberta que faz do homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores não contem histórias, podem estimular uma curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.
Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos, em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista de sua liberdade.
O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédios, projetos, manuais, etc. Observe as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incômodas. É esse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há correntes, prisões tampouco. O que pode ser mais subversivo do que a leitura?
É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns. Jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em metrô, ou no silêncio da alcova... Ler deve ser coisa rara, não pra qualquer um. Afinal de contas, a leitura é um poder e o poder é para poucos. Para obedecer não é preciso enganar, o silêncio e a linguagem da submissão. Para executar ordens a palavra é inútil.
Além disso, a leitura promove a comunicação de dores, alegrias, tantos outros sentimentos. A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna coletivo o individual e público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos porque faz identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do outro. Sim, a leitura deveria ser proibida.
Ler pode tornar o homem perigosamente humano.

In: PRADO, J e CODINI, P. (Orgs). A formação do leitor: pontos de vista. Rio de janeiro: Argus, 1999. pp 71-3

Um comentário:

  1. As poucas palavras que domino, não me seriam suficientes, perante tal majestosidade, para expressar a enorme satisfação em ler um material como este...Espetacular!

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